Robinson Cavalcanti
Jesus Cristo criou uma só Igreja, Povo da Nova Aliança, não para ser uma unidade “invisível”, metafísica, neoplatônica, mas sim visível, na História, institucional. As igrejas orientais são anteriores à Igreja de Roma e nunca foram subordinadas a ela por jurisdição, muito menos por autoridade monárquica. A igreja assíria do Leste (nestorianos), tendo como epicentro a Pérsia, chegou à Índia e à China, quase dizimada pelos mongóis e pelo Islã. As igrejas pré-calcedônicas — Egito, Etiópia, Síria, Armênia e Índia — também, nunca foram vinculadas a Roma. As igrejas bizantinas, a partir da sede do Império Romano do Oriente, apenas reconheceram no bispo de Roma (que não era o papa tal como conheceremos posteriormente) um mero “primado de honra”, por estar na capital do Império do Ocidente.
Um bom exercício de honestidade intelectual é ler a história da Igreja a partir dos autores dos três ramos da Igreja no Oriente: todos eles dirão que foi Roma que se separou dos patriarcados orientais, com a sua pretensão de uma autoridade monárquica com jurisdição universal. A ambição desta de ser “a” Igreja não se sustenta nem bíblica nem historicamente, e terá (por um milagre) de ser abandonada se quisermos um dia ter “um só rebanho e um só pastor”. Deverão ser superados, também, o nacionalismo e o tradicionalismo que engessam as igrejas do Oriente, impedindo sua atualização e engajamento na grande comissão.
Os cristãos não podem nem minimizar o valor dos pontos convergentes da Reforma Protestante do século 16, nem começar a história da Igreja com a Reforma. O Espírito Santo esteve presente nos vinte séculos de nossa história, apesar dos erros, superstições e desvios que tenham surgido pela carne dos homens. O núcleo consensual reformado deve ser uma ferramenta hermenêutica privilegiada para discernir o que manter e o que reformar no que se pensou e se fez, antes e depois da Reforma. Depois dela a Igreja de Roma oficializou novos dogmas, e, juntamente com os bizantinos, canonizaram novos “santos”. Trocou-se o livre exame pela livre interpretação e a Igreja deu lugar a seitas e “denominações”. O liberalismo mandou para o espaço as escrituras, a tradição, os credos, as doutrinas e a moral, sacrificados no altar da razão e na arrogância humana, hoje subjetiva, individualista e relativista. “Revelações” particulares e “profetas” auto-proclamados esquartejaram o Corpo de Cristo. Depois da Reforma sofremos o banho de sangue das Inquisições e a intolerância legalista, moralista, sectária, antiintelectual (e, às vezes, racista) do neofundamentalismo. Surgiram as seitas para-cristãs dos Mórmons, das Testemunhas de Jeová e da Ciência Cristã, bem como o neo/pós/iso/pseudo-pentecostalismo, cuja pretensa identidade protestante é uma contradição em si mesma.
A primeira reforma (anglicanos e luteranos), assim como a posterior reforma siriana da Igreja Mar Thoma, na Índia, nunca aceitou a anti-história de uma “apostasia geral”. Nunca pretendeu uma ruptura total com o passado para criar ou re-fundar uma nova Igreja, mas, como o próprio nome diz, reformar a Igreja de Cristo, única, santa, católica e apostólica, até então presente em quatro jurisdições. Os corpos não reformados não quiseram se reformar, ou apenas se contra-reformar. Os protestantes não romperam, foram expulsos. Hoje, entre o neo-integrismo reacionário dos corpos não-reformados e o cipoal fragmentado dos corpos deformados — incapazes de dar uma resposta ao Estado e à ideologia secularista —, almas sedentas clamam por uma Igreja de dois mil anos. Igreja dos Pais da Igreja e dos Pais Apostólicos; Igreja dos Reformadores, com uma rica herança histórica, espiritual, doutrinária e litúrgica. Com ética e com estética; com vitalidade e com santidade; com dinamismo e com profundidade. Com o sacerdócio universal dos crentes e com o sacerdote especial dos vocacionados e ordenados: diáconos, presbíteros e bispos (sucessores dos apóstolos). O futuro depende de um presente que retome o passado.
Da Pré-Reforma herdamos o fechamento do cânon bíblico, o estabelecimento do núcleo doutrinário contido nos Credos Apostólico e Niceno e o estabelecimento de uma forma de governo para a Igreja: o episcopado (“...ao largo dos tempos, vai-se continuando a sucessão dos bispos e a administração da Igreja, de sorte que a Igreja sempre esteve estabelecida sobre os bispos, e todo ato da Igreja era dirigida por estes propósitos”, Cipriano de Cartago, De Unitate, 23.4). Da Reforma, a ênfase na autoridade das Sagradas Escrituras como fonte de revelação e a salvação pela graça mediante a fé. Da Pós-Reforma herdamos a riqueza sistematizada das confissões de fé, o compromisso puritano, a espiritualidade pietista, a paixão avivalista e o ardor missionário, o novo nascimento. Protestantes anticatólicos? Não, católicos reformados, verdadeiros católicos!
• Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política – teoria bíblica e prática histórica e A Igreja, o País e o Mundo – desafios a uma fé engajada. www.dar.org.br
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